24 dezembro 2013

Devolver o Bilhete a Deus

O amor não tem lógica, não tem interesse, explica-se por si mesmo 

O mundo vivera a primeira e esplendorosa semana. O espaço vazio e informe povoara-se de luz e de vida. As estrelas rolavam nos céus e o mundo transformara-se num jardim de cores e perfumes. A criação, agradecida, organizou uma festa para Deus. Cada criatura trouxe o melhor que podia. Os esquilos trouxeram as nozes mais crocantes, o reino vegetal escolheu perfumes, rosas e maçãs. Das profundezas das águas vieram pérolas. Nem faltou a música do vento e o doce mel das abelhas. Chegando a vez do homem, apresentou-se de mãos vazias. Nada lhe parecera digno do Senhor. No último instante ocorreu-lhe uma ideia salvadora. Com as mãos vazias, mas com o coração acelerado, disse duas palavras maravilhosas: “Eu amo-te!”.

O poeta inglês John Milton, a partir da primeira página da Bíblia, escreveu, em 1672, o poema Paraíso Perdido. Narra o confronto de Deus com Lúcifer. Este, derrotado, vinga-se contra a criatura, feita à imagem e semelhança de Deus. Na realidade, o Jardim Terreal não pode ser apenas saudade, mas esperança. Não é um sonho que se desfez, mas um projecto que pretendemos realizar. Estamos muito próximos do paraíso perdido, mas também muito perto do contrário, o inferno. A linha divisória, que separa o paraíso do inferno, é o amor. Um personagem do romancista russo Fiódor Dostoiévski, Ivan Karamazov, diante da dificuldade de entender o problema do mal no mundo, tenta uma saída: “Eu recuso este mundo e devolvo o meu bilhete a Deus”.

O mal nunca vem de Deus. O mal é fruto da liberdade humana, mal entendida e mal usada. O mal vem da recusa de entender e acolher o amor de Deus. Se dele procedesse o mal, teria a marca do demónio. Deus só sabe, Deus só pode, Deus só quer amar. A afirmação do teólogo Andrés Torres Queiruga tem plena fundamentação bíblica. A criatura humana não foi criada para servir a Deus, nem mesmo para amar a Deus. O homem e a mulher foram criados por amor. E o amor não tem lógica, não tem interesse, explica-se por si mesmo. É pura gratuidade.

Deus não volta atrás no seu amor. Ele tem paciências infinitas com as suas criaturas. O amor é a sua grande aposta. Um dia, amanhã ou dentro de alguns milénios, o homem acabará por entender o amor de Deus. Neste dia a própria natureza recuperará a sua inocência primitiva, a terra dos homens voltará a ser o Jardim desejado por Deus. Cansado de guerras, de ódio, de exploração, de violência e egoísmo, o homem abandonar-se-á ao amor. Neste dia surgirão novos céus e nova terra, onde não mais haverá pranto, lágrimas e luto (Ap. 21). Serão novamente abertas as portas do Paraíso Perdido. O bilhete é o amor.


A. C.

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